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(Des)judicialização da Saúde: Mediação e Diálogos Interinstitucionais como Saída para o Labirinto dos Medicamentos no SUS!

O acesso à saúde é um direito fundamental, e o Sistema Único de Saúde (SUS) representa uma conquista monumental na garantia desse direito para milhões de brasileiros. No entanto, quando um cidadão precisa de um medicamento específico, especialmente aqueles de alto custo ou que não constam nas listas padronizadas, a jornada pode se transformar em um verdadeiro labirinto. 

Partindo do exame da legislação, jurisprudência e doutrina, analisa-se o trajeto usual dos pedidos de medicamentos no Sistema Único de Saúde, enfatizando-se solicitações fora da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME). O roteiro usual pelo qual a única resposta às negativas é a propositura de ações judiciais onera o sistema, torna-o complexo e potencializa iniquidades. Nesse contexto, procura-se repensar essa sistemática partindo de mecanismos não judiciais de solução de conflitos.

A chamada “judicialização da saúde” – o recurso cada vez mais frequente ao Poder Judiciário para obter tratamentos, exames e, principalmente, medicamentos – tornou-se um fenômeno com impactos profundos. Ela pode, por um lado, garantir o acesso individual a um tratamento vital, mas, por outro, sobrecarrega os tribunais, pressiona os orçamentos públicos da saúde e pode gerar distorções na alocação de recursos, beneficiando alguns em detrimento de políticas de saúde coletivas.

É urgente buscar caminhos para a (des)judicialização da saúde, e a mediação e os diálogos interinstitucionais surgem como alternativas promissoras. Quer entender melhor os desafios do acesso a medicamentos no SUS e as iniciativas para tornar esse processo mais justo e eficiente? 

Este artigo mergulha na complexidade desse cenário, analisando como podemos construir pontes de diálogo e colaboração para que o direito à saúde seja efetivado de forma mais racional, equânime e menos conflituosa.

O “Roteiro Usual” da Luta por Medicamentos no SUS (E Seus Problemas)

Quando um paciente necessita de um medicamento, o caminho ideal seria: consulta médica, prescrição, e dispensação na farmácia do SUS. Contudo, para medicamentos que não estão na RENAME ou em protocolos clínicos estabelecidos, o “roteiro usual” costuma ser bem mais tortuoso:

  1. Prescrição Médica: O médico, seja da rede pública ou privada, prescreve um medicamento específico, muitas vezes de alto custo ou sem registro na Anvisa para aquela indicação (uso off-label), por considerá-lo o mais adequado para o paciente.

  2. Solicitação Administrativa: O paciente (ou seu representante) solicita o medicamento à Secretaria de Saúde (municipal, estadual ou, em alguns casos, federal).

  3. A Negativa (Frequente): Se o medicamento está fora da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) ou dos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT), a negativa administrativa é uma resposta comum. As justificativas podem variar: o medicamento não é padronizado, não há evidência científica robusta para aquela indicação, alto custo, alternativas terapêuticas disponíveis na rede, etc.

  4. A Judicialização como “Única Saída”: Diante da negativa e da urgência do tratamento, a única resposta às negativas que muitos pacientes e seus advogados ou defensores públicos enxergam é a propositura de ações judiciais.

  5. A Decisão Judicial (Muitas Vezes Liminar): Com base no direito constitucional à saúde, muitos juízes concedem liminares determinando o fornecimento do medicamento.

  6. Os Impactos no Sistema:

    • Onera o Sistema: O cumprimento de decisões judiciais individuais pode consumir uma parcela significativa do orçamento da saúde, muitas vezes destinado a medicamentos de altíssimo custo sem uma análise aprofundada de custo-efetividade ou impacto orçamentário global.

    • Torna-o Complexo: A gestão de milhares de ordens judiciais pulverizadas é um desafio logístico e administrativo para os gestores do SUS.

    • Potencializa Iniquidades: Quem tem acesso a advogados ou à Defensoria Pública e consegue uma decisão judicial pode obter o medicamento, enquanto outros, em situação similar, mas sem o mesmo acesso à “justiça individualizada”, podem ficar sem. Isso fere o princípio da equidade do SUS.

    • “Fura a Fila” e Desorganiza o Planejamento: As decisões judiciais podem obrigar a compra emergencial de medicamentos não planejados, atrapalhando o planejamento da assistência farmacêutica e a negociação de preços em maior escala.

Esse ciclo vicioso da judicialização da saúde evidencia a necessidade de repensar essa sistemática partindo de mecanismos não judiciais de solução de conflitos.

Mediação na Saúde: Construindo Pontes entre Paciente, Médico e Gestor do SUS

A mediação, como ferramenta de diálogo facilitado, pode desempenhar um papel crucial na (des)judicialização da saúde, especialmente nos pedidos de medicamentos:

  • Como Funcionaria a Mediação para Casos de Medicamentos?

    1. Espaço de Diálogo Qualificado: Após uma negativa administrativa, em vez de ir direto à Justiça, poderia ser oferecido um espaço de mediação. Participariam o paciente (ou seu representante/advogado/defensor), um representante técnico da Secretaria de Saúde (farmacêutico, médico sanitarista) e, idealmente, o médico prescritor.

    2. O Mediador em Saúde: Um profissional neutro, treinado em mediação e com conhecimento do sistema de saúde, facilitaria a comunicação.

    3. Esclarecimento das Razões: A Secretaria de Saúde poderia explicar detalhadamente os motivos técnicos e legais da negativa (ex: falta de evidência científica robusta para aquela indicação, alternativas terapêuticas eficazes e seguras já disponíveis no SUS, preocupações com segurança do paciente para usos não aprovados).

    4. Apresentação das Necessidades do Paciente: O paciente e seu médico poderiam expor a gravidade do caso, a urgência, a falha de tratamentos anteriores disponíveis no SUS, e as evidências que sustentam a escolha do medicamento prescrito.

    5. Busca por Soluções Consensuais e Técnicas:

      • Existe alguma alternativa terapêutica na RENAME que ainda não foi tentada e que poderia ser eficaz?

      • A evidência científica apresentada pelo médico prescritor é suficiente para justificar uma análise excepcional pela equipe técnica do SUS?

      • É possível um acordo para o fornecimento por um período de teste, com acompanhamento rigoroso dos resultados?

      • Pode-se buscar informações junto a Comissões como a CONITEC (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS) sobre o status daquele medicamento?

  • Vantagens da Mediação nesses Casos:

    • Solução mais Rápida: Comparada a um processo judicial.

    • Decisão Mais Informada Tecnicamente: O diálogo direto entre médicos e técnicos do SUS pode levar a um entendimento mais aprofundado do caso do que uma análise puramente jurídica.

    • Preservação de Recursos: Evitar custos judiciais e compras emergenciais mais caras.

    • Educação em Saúde: O paciente e o médico prescritor podem entender melhor os critérios e os processos do SUS para incorporação de novas tecnologias.

    • Humanização: Um espaço de escuta e diálogo é mais humanizado do que um embate judicial.

A mediação não eliminaria todos os casos de judicialização, mas certamente poderia filtrar muitos deles, reservando a via judicial para situações onde o consenso é realmente impossível ou onde há uma clara violação de direitos que só o Judiciário pode corrigir.

Diálogos Interinstitucionais: Fortalecendo a Rede para Decisões Mais Racionais

Além da mediação caso a caso, a (des)judicialização da saúde passa fundamentalmente pela construção de diálogos interinstitucionais permanentes e estruturados. Isso envolve:

  • Comitês ou Câmaras Técnicas de Saúde (NAT-JUS e Comitês Estaduais/Municipais):
    Esses comitês, que já existem em muitos lugares (como os Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário – NAT-JUS), reúnem representantes do Judiciário, do Ministério Público, das Defensorias Públicas, das Secretarias de Saúde e, idealmente, da comunidade médica e de pacientes.

    • Função: Analisar os pedidos de medicamentos e tratamentos (especialmente os mais complexos e de alto custo) antes ou durante a fase judicial, fornecendo pareceres técnicos baseados em evidências científicas e nas políticas do SUS.

    • Impacto: Ajudam a qualificar as decisões judiciais, evitam o fornecimento de tratamentos ineficazes ou inseguros, e podem identificar alternativas terapêuticas já disponíveis. Funcionam como um espaço de “pré-mediação” técnica.

  • Mesas de Negociação Permanente entre Gestores do SUS e o Sistema de Justiça:
    Para discutir fluxos, gargalos, critérios para fornecimento de medicamentos não padronizados, e para buscar soluções administrativas conjuntas que reduzam a necessidade de judicialização.

  • Colaboração com Órgãos de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS):
    Fortalecer o diálogo entre a CONITEC (nível federal) e as instâncias estaduais/municipais com o Judiciário, para que as decisões de incorporação (ou não incorporação) de novas tecnologias sejam mais bem compreendidas e consideradas nas decisões judiciais.

  • Envolvimento das Sociedades Médicas e Conselhos Profissionais:
    Para discutir protocolos, diretrizes terapêuticas, e para alinhar as práticas de prescrição com as melhores evidências científicas e com as políticas do SUS, sem cercear a autonomia médica, mas promovendo a responsabilidade na prescrição.

  • Capacitação de Todos os Atores:
    Juízes, promotores, defensores, advogados, médicos e gestores precisam ser continuamente capacitados sobre Direito Sanitário, Saúde Baseada em Evidências, funcionamento do SUS e os processos de incorporação de tecnologias.

Esses diálogos interinstitucionais são fundamentais para construir um entendimento comum sobre os desafios, os limites e as possibilidades do SUS, e para desenvolver estratégias coordenadas que priorizem a saúde coletiva e a sustentabilidade do sistema, sem negligenciar as necessidades individuais legítimas. Eles ajudam a repensar essa sistemática partindo de mecanismos não judiciais de solução de conflitos em um nível macro.

Benefícios de uma Abordagem Menos Judicializada e Mais Dialógica para o Acesso a Medicamentos

Adotar a mediação e fortalecer os diálogos interinstitucionais pode trazer inúmeros benefícios:

  • Decisões Mais Qualificadas Tecnicamente: Baseadas em evidências científicas e na análise de custo-efetividade, e não apenas na urgência individual.

  • Maior Equidade no Acesso: Reduz a distorção onde apenas quem judicializa consegue o tratamento.

  • Uso Mais Racional dos Recursos Públicos: Evita gastos excessivos com medicamentos de eficácia duvidosa ou para os quais existem alternativas mais baratas e igualmente eficazes no SUS.

  • Fortalecimento do Planejamento da Assistência Farmacêutica: Permite que o SUS planeje melhor suas compras e negocie melhores preços.

  • Redução da Sobrecarga do Judiciário: Libera os tribunais para se dedicarem a outras questões relevantes.

  • Maior Transparência nos Processos Decisórios do SUS: Quando os critérios são claros e discutidos abertamente, a confiança no sistema aumenta.

  • Promoção de uma Cultura de Responsabilidade Compartilhada: Entre prescritores, gestores, pacientes e o sistema de justiça.

É um caminho que busca o equilíbrio entre o direito individual à saúde e a necessidade de um sistema de saúde público, universal e sustentável para todos.

Desafios na Implementação Efetiva da (Des)judicialização

Apesar das vantagens, a transição para um modelo menos judicializado e mais dialógico enfrenta obstáculos:

  1. Urgência dos Casos: Muitas vezes, o paciente não pode esperar por um processo de mediação ou por uma deliberação de um comitê técnico.

  2. Resistência à Mudança: Tanto de profissionais do direito acostumados à via judicial, quanto de gestores que podem ver o diálogo como uma “perda de autoridade”.

  3. Falta de Estrutura para Mediação e Comitês Técnicos em Todos os Lugares: É preciso investimento em pessoal qualificado e infraestrutura.

  4. Autonomia Médica na Prescrição: Encontrar o equilíbrio entre a liberdade do médico de prescrever o que considera melhor e a necessidade de seguir protocolos e diretrizes baseadas em evidências é um debate constante.

  5. Pressão da Indústria Farmacêutica: Que muitas vezes incentiva a judicialização para garantir a venda de medicamentos de alto custo ainda não incorporados pelo SUS.

  6. Complexidade e Dinamismo da Ciência Médica: Novas drogas e tratamentos surgem constantemente, e o processo de incorporação pelo SUS pode ser demorado, gerando um descompasso que alimenta a judicialização.

Superar esses desafios exige vontade política, investimento, capacitação e, acima de tudo, uma mudança de mentalidade de todos os envolvidos.

Um SUS Mais Forte Passa pelo Diálogo e pela Mediação

A busca por medicamentos no SUS, especialmente aqueles fora da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, não precisa ser invariavelmente um campo de batalha judicial. A (des)judicialização da saúde, por meio da mediação e de diálogos interinstitucionais robustos, oferece um caminho mais promissor.

Ao repensar essa sistemática partindo de mecanismos não judiciais de solução de conflitos, podemos construir um sistema onde as decisões são mais técnicas, os recursos são usados de forma mais racional e justa, e o diálogo entre paciente, médico e gestor do SUS é a primeira, e não a última, alternativa. Isso não significa negar o direito de acesso à Justiça quando ele for realmente necessário, mas sim utilizá-lo como último recurso, após esgotadas as vias de consenso e de análise técnica qualificada.

Um SUS mais forte, equânime e sustentável depende da nossa capacidade de inovar, de dialogar e de colocar o bem-estar coletivo, informado pela melhor ciência e pelo respeito aos direitos individuais, no centro das decisões.

Qual sua experiência com pedidos de medicamentos no SUS? Você acredita que a mediação poderia ajudar? Deixe seu comentário!


FAQ – Perguntas e Respostas sobre (Des)judicialização da Saúde e Medicamentos no SUS

  1. P: Se o médico me receitar um remédio que não está na lista do SUS (RENAME), eu tenho direito a ele pela Justiça?
    R: Depende. O STF e o STJ têm decisões que estabelecem alguns critérios, como a comprovação da imprescindibilidade do medicamento, a incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo, a existência de registro na Anvisa e, em alguns casos, a inexistência de substituto terapêutico no SUS ou a ineficácia dos tratamentos já oferecidos. A judicialização não é garantia automática.

  2. P: O que são os NAT-JUS (Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário)? Eles ajudam na mediação?
    R: Os NAT-JUS são formados por profissionais de saúde que dão pareceres técnicos para auxiliar os juízes em decisões sobre saúde. Eles não fazem mediação diretamente, mas seus pareceres podem ser usados em tentativas de conciliação ou para qualificar o diálogo entre as partes, ajudando a evitar decisões baseadas apenas na emoção ou na falta de informação técnica.

  3. P: A mediação pode ser usada se o SUS negar um tratamento que não seja medicamento, como uma cirurgia ou um exame?
    R: Sim, a lógica da mediação pode ser aplicada a diversos conflitos na saúde, não apenas para medicamentos. O objetivo é sempre buscar o diálogo e uma solução consensual e tecnicamente embasada.

  4. P: Quem pode solicitar uma mediação em um caso de negativa de medicamento pelo SUS?
    R: O paciente, seu representante legal, a Defensoria Pública, o Ministério Público, ou até mesmo a própria Secretaria de Saúde, se houver um canal ou programa de mediação estabelecido para isso.

  5. P: Os acordos feitos em mediação com o SUS sobre fornecimento de medicamentos são cumpridos?
    R: Se o acordo for bem estruturado, com a participação dos gestores com poder de decisão, e idealmente formalizado (talvez até com homologação judicial se as partes assim desejarem), a tendência é que seja cumprido. A mediação busca justamente construir compromissos realistas e sustentáveis.

  6. P: A “cultura de paz” mencionada no texto se aplica também à relação entre médicos e gestores do SUS?
    R: Com certeza! Muitas vezes, há um distanciamento ou até atrito entre quem prescreve (médico) e quem gerencia os recursos (gestor). Um diálogo interinstitucional mais próximo, envolvendo sociedades médicas e gestores, pode alinhar protocolos, discutir novas evidências e construir consensos que beneficiem os pacientes e o sistema.

  7. P: A mediação pode ajudar a acelerar a incorporação de novos medicamentos no SUS?
    R: A mediação em si não muda o processo técnico de incorporação da CONITEC. Mas, ao promover o diálogo e a troca de informações técnicas, ela pode ajudar a esclarecer por que um medicamento ainda não foi incorporado, ou a identificar se há evidências novas e robustas que justifiquem uma reanálise mais rápida pela CONITEC. Além disso, pode encontrar soluções temporárias para casos urgentes enquanto o processo de incorporação está em andamento.


Este artigo visa contribuir para um debate essencial sobre o futuro do nosso SUS. A participação e o diálogo de todos os envolvidos são fundamentais!

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